quinta-feira, 23 de junho de 2011

O texto que deu origem à série


Maria Porunga estava andando pelas florestas perdidas do Beleléu quando tropeçou numa coisa estranha. Olhou para o chão e viu uma caneta grande e colorida. Era um sinal. Das árvores do Beleléu caíam muitas coisas. Não folhas, maçãs ou goiabas, mas fivelas, meias e botões. E também canetas. Maria Porunga já sabia que quando um objeto caía no chão na sua frente, era para avisá-la de que outro objeto estava perdido e pedindo socorro. Este era o código. Então, Maria Porunga parou e, atentamente, olhou ao seu redor para saber quem precisava de ajuda. De repente seus olhos brilharam e um sorriso esticado cravou em seu rosto. Era incrível! Queria tocar, mas algo lhe dizia para não fazê-lo. Não sabia o que era aquilo, só sabia que era mágico e que precisava tocá-lo. Embora gostasse das coisas certas, Porunga não podia evitar e, sem que ninguém visse, se entregou ao erro, ao diferente, ao proibido: comeu um pedaço daquele tesouro, ali mesmo, entre as árvores. Decidida, pegou a caixinha vermelha que guardava três novas experiências e a metade da que ela tinha comido. Sentiu suas mãos formigarem e quase não podia controlar. Guardou a caixa vermelha num lugar seguro. Aliás, Maria Porunga sempre foi a rainha dos esconderijos, dos bolsos fundos, dos fundos falsos, das passagens secretas e das gavetas emperradas. Maria Porunga escondeu seu tesouro. E as mãos formigavam. E mais e mais. Estavam queimando. Então, Maria as refrescou num lago alto, onde a água corrente era fria. Onde havia muitas conchas, pedras e gravetos. Porunga foi pegando um por um e os tirando da água. “Precisam respirar, precisam do Sol. Quem não precisa?” pensou.
            No dia seguinte tudo era silêncio e isso não era um bom sinal. Alguma coisa estava muito errada. Não havia ninguém, não havia nada. De repente Maria entendeu. Era o mal rondando seu reino. O mal não consegue entrar, de jeito nenhum, nem ontem, nem hoje, nem de dia e nem de noite. Mas ele ronda e assusta e ameaça e apavora. Mas nunca, nunca entra. Não no Beleléu. Não enquanto Maria Porunga existir. E lá estava ele, inconformado com a beleza do reino. Incomodado com a alegria que ele não podia ter. Por isso era tudo silêncio. Porque ele estava perto. Por isso era preciso agir. Maria Porunga desapareceu por alguns segundos e voltou com um olhar confiante. Sem que o mal a visse, comeu a outra metade da sua jóia e mais outra, inteirinha. Sentiu seu coração bater forte e as borboletas do seu estômago baterem rapidamente as asas. E uma vontade incontrolável de fazer xixi espetou até a ponta do dedão. Quando o xixi se foi sentiu-se leve e pôde ouvir aos poucos os barulhos mais gostosos. O ranger da porta, a água escorrendo em espiral pelo ralo, o vento apitando na frestinha da janela, os chinelos arrastando no chão, o saco de pão sendo esmagado. Esse som tem cheiro de fome. Hum! Era isso! O mal tinha ido embora e tudo voltou a ser gostoso.
            No outro dia Maria Porunga acordou cansada, preguiçosa de ver o mundo se mexer. Se encolheu, se entortou, se escondeu. Mas o Sol queria porque queria brincar. Alcançou a cama dela e a puxou pelo pé. Maria Porunga, para não decepcioná-lo, cantou uma música e disfarçadamente abriu a caixa vermelha. Lá estavam duas últimas esperanças. Sem muita vontade comeu uma, deixando a outra e sentiu seu corpo todo espetar. Deu pulinhos com risadas e foi ao encontro do Sol. Brincaram, dançaram, jogaram. Ele pra ela, ela pra ele. E o corpo todo espetava. Só acalmou quando o vento bateu com força, como quem assopra com pressa um ferimento. E tudo acalmou.
            Ontem Porunga comeu a última baguncinha. E deitou e dormiu. E deixou que a coisa toda acontecesse lá no mundo das fadas-novelas. Ela só queria assistir. Deitar, fechar os olhos e assistir.
            Assim a caixa vermelha se esvaziou. Maria Porunga secretamente provou cada gostinho do proibido. E cada gostinho do seu segredo. A caixa vermelha  ficou vazia. Que maravilha! Mas não por muito tempo. Maria Porunga estava mesmo procurando um lugar para guardar ovelhas.

(escrito em 2007)

Nenhum comentário:

Postar um comentário