sexta-feira, 15 de junho de 2012

As prendas do lar. Hein?


              Sim, eu adoro maquiagem, amo de paixão um salto alto e gosto de cor-de-rosa. Mas faltam alguns detalhes bem convencionais para eu receber o meu certificado de mulherzinha.
            Por exemplo: eu não sei cozinhar. Eu não estou dizendo que eu não sei fazer um Bacalhau à Gomes de Sá. Eu não sei fazer nem arroz e nem feijão mesmo. Não é que eu não saiba, porque aí já beira a estupidez, é que eu nunca tentei. A minha relação com a cozinha se resume entre a esponjinha e o pano de prato. Eu gosto de limpar e arrumar. Talvez eu tenha levado muito à sério a recomendação da minha mãe para não brincar com fogo e, por isso, do fogão eu mantenho considerável distância. Sou devota do “Santo Microondas da Lasanha Congelada”. Lá em casa quem cozinha é o meu marido. E não é diferente na casa das minhas amigas. Quando vamos à jantares da turma, ninguém se surpreende ao saber que foi o marido que fez a comida. A mulher cuidou, no máximo, da decoração da mesa. Até mesmo os solteiros gostam de cozinhar para os amigos. O fato é que, hoje em dia, não existem regras. As tarefas em casa são divididas mais por vocação do que por gênero. É um traço da nossa geração.
            Este ano meus pais completam 50 anos de casados e quando ainda eram namorados, isso há quase 60 anos, minha mãe ganhou um livro grosso e ilustrado chamado “A Enciclopédia da Mulher”. É claro que de posse de um livro desses as feministas teriam algo muito mais significativo para queimar ao invés de sutiãs. Mas é um livro um tanto curioso, para guardar e mostrar para as netas como eram as coisas no passado. Outra coisa engraçada daquela época eram os cursos de Educação Familiar, mais conhecidos com “caça-marido”. Lá ensinavam as mulheres a cozinhar, costurar, lavar, passar, além de regras de etiqueta. Definitivamente este curso não existia mais na minha época, mas sabe que eu ia gostar de fazer? Sério mesmo. Na minha adolescência fiz curso de etiqueta e aprimoramento social e simplesmente adorava. Até hoje, em determinados eventos, coloco em prática muitas lições. Sou super a favor dos bons costumes e das boas maneiras.
             Mas voltando aos dotes do lar, um dia ainda vou me inscrever em um curso de culinária. Tanto é que a minha última peripécia tem sido justamente o curso de corte e costura que comecei a fazer. Sei os nomes de tecido tanto quanto sei os de carne. Me dá um pedaço de alcatra dizendo que é picanha que eu acredito. Eu até sei diferenciar gato de lebre, agora organza de tafetá eu vou ficar devendo. Mas, pasmem, já fiz minha primeira lição e com louvor. Uma saia reta! E o meu acabamento foi muito elogiado pela professora. A única coisa é que, quando a saia estava pronta e aprovada, eu olhei para ela e pensei: “Agora eu vou fazer do meu jeito!” Tratei de incrementar a peça com bolsos, rendas e cristais. E ali naquela sala, entre agulhas e retalhos, moldes e bobinas, fui de costureira a designer de moda numa alfinetada! Não consigo controlar os meus surtos de criatividade. Tenho certeza que, quando eu souber cozinhar, vou fazer uma releitura da Venus de Milo no leitão a pururuca.
            Agora, se tem uma coisa que eu entendo é de alicate, chave de fenda e martelo. Lá em casa as instalações e consertos em geral, ficam por minha conta. Aliás, ando louca por uma serra tico-tico! Cortar madeira como quem corta papel é a glória! Então poderei acrescentar “reformas” na minha lista de habilidades domésticas. E alguém ainda tem coragem de dizer que eu não sou prendada?


(escrito em maio de 2012)

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Podia ter dormido sem essa


              Eu tinha uns vinte e poucos anos e fazia faculdade de Artes Cênicas. Estávamos ensaiando a peça Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues. Naquela época eu tinha comprado o meu primeiro carro. Paguei com o meu dinheirinho em intermináveis 24 parcelas. Foi uma grande conquista. Sem falar que era o máximo ter meu próprio carro. Sair pela cidade a hora que eu quisesse, passeando por onde me desse na telha. Assim, eu desfrutava daquela sensação de liberdade, de asas abertas, sentida nos tempos da bicicleta, quando me foi permitido, enfim, pedalar além do portão do prédio.
            Ir para a faculdade de carro, então, era o auge da independência. Eu estava, literalmente, seguindo o caminho que escolhi. Vários colegas de turma tinham carro do mesmo modelo que o meu. Éramos estudantes de teatro e era o que dava para ter. Por motivos óbvios, não vou citar a marca, mas era um carro popular. Pois bem, minha travessura aconteceu num dia comum de aula. Cheguei na faculdade para o ensaio, estacionei meu carro ao lado dos demais e já ia entrando quando vi meu amigo apavorado. Tinham roubado seu carro. Inconformado, ele andava de um lado para o outro, com a chave do carro na mão. Foi o que sobrou. Peguei a chave da mão dele e fiquei olhando para ela. Eu já tinha ouvido falar da tal ligação direta mas, para mim, a chave tinha toda uma conotação de poder. Só quem tem a chave pode abrir o baú. É preciso a chave para abrir a porta. Só a chave revela o segredo. E não me venha com pé de cabra ou qualquer outro jeitinho de abrir. Na minha mente poética, uma chave era algo insubstituível. Eu gostava de atribuir determinados valores aos objetos. Porém, toda a soberania da chave estava prestes a cair por terra diante dos meus olhos. Tomada por um impulso, que até hoje não sei de onde veio (mas creio ter vindo da mesma mente poética), tentei abrir o meu carro com a chave do carro roubado do meu amigo. Abriu! Outro impulso inevitável. Tentei ligar o meu carro. Não ligou. Olhei para o lado e vi o carro de outra amiga. Também da mesma marca e modelo. Com a chave na mão fui em câmera lenta até o carro dela. Mentira, fui até que bem rapidinho pois a motivação era grande, a câmera lenta é só para fazer um suspense. Tentei abrir o carro da minha amiga com a chave do carro roubado do meu amigo. Abriu! Eu não ia parar por aí. Tentei ligar e, pasmem, o carro ligou! Eu não sei o que eu senti naquela hora, uma mistura de descoberta com indignação, com “preciso fazer alguma coisa” e foi o que eu fiz. Só não posso dizer que fiz a coisa certa. Já que o carro ligou, dei ré e o troquei de lugar. Coloquei meio escondidinho. Corri para a sala de aula, interrompi o ensaio e falei: “Gente, roubaram o carro do Braz. Que sorte que a Aline não veio com o dela hoje”. Sim, Aline era a dona do carro que “eu roubei”. Vale dizer que ela ia se casar, o carro não tinha seguro e era tudo que ela tinha. Sem falar das coisas que estavam dentro do carro. Essa menina saiu da sala correndo, seguida pela turma toda. Quando viu que a vaga onde estacionou estava vazia, começou a chorar e a passar mal. Eu, desesperada, mostrei onde estava seu carro e contei a história da chave. Mas estava feito. Nada fazia a Aline se acalmar.        
                Resultado: ela foi embora soluçando e eu tive que ficar até o final do ensaio com a turma inteira me lançando olhares de ódio altamente expressivos, daqueles que só estudantes de teatro são capazes de lançar. Quando a aula acabou, fui pianinho no meu carro, sem asas, direto para casa. Me cobri até o nariz e, ainda com frio na barriga, pensei: “podia ter dormido sem essa”. 
 
(escrito em fevereiro de 2012)