Eu
tinha uns vinte e poucos anos e fazia faculdade de Artes Cênicas. Estávamos
ensaiando a peça Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues. Naquela época eu
tinha comprado o meu primeiro carro. Paguei com o meu dinheirinho em
intermináveis 24 parcelas. Foi uma grande conquista. Sem falar que era o máximo
ter meu próprio carro. Sair pela cidade a hora que eu quisesse, passeando por
onde me desse na telha. Assim, eu desfrutava daquela sensação de liberdade, de
asas abertas, sentida nos tempos da bicicleta, quando me foi permitido, enfim,
pedalar além do portão do prédio.
Ir para a faculdade de carro, então,
era o auge da independência. Eu estava, literalmente, seguindo o caminho que
escolhi. Vários colegas de turma tinham carro do mesmo modelo que o meu. Éramos
estudantes de teatro e era o que dava para ter. Por motivos óbvios, não vou citar
a marca, mas era um carro popular. Pois bem, minha travessura aconteceu num dia
comum de aula. Cheguei na faculdade para o ensaio, estacionei meu carro ao lado
dos demais e já ia entrando quando vi meu amigo apavorado. Tinham roubado seu
carro. Inconformado, ele andava de um lado para o outro, com a chave do carro
na mão. Foi o que sobrou. Peguei a chave da mão dele e fiquei olhando para ela.
Eu já tinha ouvido falar da tal ligação direta mas, para mim, a chave tinha
toda uma conotação de poder. Só quem tem a chave pode abrir o baú. É preciso
a chave para abrir a porta. Só a chave revela o segredo. E não me venha com
pé de cabra ou qualquer outro jeitinho de abrir. Na minha mente poética, uma
chave era algo insubstituível. Eu gostava de atribuir determinados valores aos
objetos. Porém, toda a soberania da chave estava prestes a cair por terra
diante dos meus olhos. Tomada por um impulso, que até hoje não sei de onde veio
(mas creio ter vindo da mesma mente poética), tentei abrir o meu carro com a
chave do carro roubado do meu amigo. Abriu! Outro impulso inevitável. Tentei
ligar o meu carro. Não ligou. Olhei para o lado e vi o carro de outra amiga.
Também da mesma marca e modelo. Com a chave na mão fui em câmera lenta até o
carro dela. Mentira, fui até que bem rapidinho pois a motivação era grande, a
câmera lenta é só para fazer um suspense. Tentei abrir o carro da minha amiga
com a chave do carro roubado do meu amigo. Abriu! Eu não ia parar por aí.
Tentei ligar e, pasmem, o carro ligou! Eu não sei o que eu senti naquela hora,
uma mistura de descoberta com indignação, com “preciso fazer alguma coisa” e
foi o que eu fiz. Só não posso dizer que fiz a coisa certa. Já que o carro
ligou, dei ré e o troquei de lugar. Coloquei meio escondidinho. Corri para a
sala de aula, interrompi o ensaio e falei: “Gente, roubaram o carro do Braz.
Que sorte que a Aline não veio com o dela hoje”. Sim, Aline era a dona do carro
que “eu roubei”. Vale dizer que ela ia se casar, o carro não tinha seguro e era
tudo que ela tinha. Sem falar das coisas que estavam dentro do carro. Essa
menina saiu da sala correndo, seguida pela turma toda. Quando viu que a vaga
onde estacionou estava vazia, começou a chorar e a passar mal. Eu, desesperada,
mostrei onde estava seu carro e contei a história da chave. Mas estava feito. Nada
fazia a Aline se acalmar.
Resultado:
ela foi embora soluçando e eu tive que ficar até o final do ensaio com a turma
inteira me lançando olhares de ódio altamente expressivos, daqueles que só
estudantes de teatro são capazes de lançar. Quando a aula acabou, fui pianinho
no meu carro, sem asas, direto para casa. Me cobri até o nariz e, ainda com
frio na barriga, pensei: “podia ter dormido sem essa”.
(escrito em fevereiro de 2012)
Nenhum comentário:
Postar um comentário