segunda-feira, 27 de junho de 2011

A Casa, o Monstro e a Síndica


Tem coisas na vida que marcam para sempre. A primeira bicicleta, o primeiro beijo, o primeiro emprego, a primeira casa. Mas não aquela onde você morou com seus pais, e sim o primeiro lugar que você pode chamar de seu. No meu caso, minha primeira casa foi um apartamento conjugado, minúsculo, que morei durante dois anos, quando me mudei sozinha para o Rio de Janeiro. Era alugado, mas era meu, ué? E sendo assim, solenemente, pendurei uma placa na porta com os dizeres: “Casinha Dig-Dig”. O nome foi uma homenagem à minha verdadeira primeira casa, aquela de papelão, onde só cabiam duas, talvez três crianças espremidas e algumas bonecas. Meu apartamento era um pouquinho maior do que a Casinha Dig-Dig da minha infância.
Morar em um imóvel tão pequeno tem suas vantagens. O aluguel é mais barato, é fácil de arrumar, vive limpinho, é aconchegante. Mas sempre tem um defeito. E como a minha casinha não fugia à regra, não demorou muito para que eu descobrisse que o dela não poderia ser pior. Era um cheiro horroroso que, às vezes, saia pelo ralo do banheiro. Um dia, eu cheguei a ver a tampa solta, mexer com a pressão. Foi assustador! Então criei um personagem chamado "O Monstro Bafo do Ralo". Por sorte antes do cheiro surgir, um barulho anunciava a chegada do monstro e dava tempo de fugir. Era um salve-se quem puder! Pois bem, fui dar meu jeito. Despejei vários produtos de limpeza no ralo, acendi incenso no banheiro, passei bom ar, mas nada resolveu. O monstro era infalível. Até que tive uma idéia radical. Meu pai me forneceu a arma: uma cola tão poderosa que o nome não poderia ser outro se não "Pra que prego?". Sim, este era o nome da cola! Era praticamente uma massa corrida. Fiz placas internas de espuma, plástico e borracha, tamanha a minha fúria. Enchi de cola e vedei o ralo e todas as frestinhas. Deu certo! O terrível Monstro Bafo do Ralo estava preso e não passava de um punzinho enrustido nas profundezas de um cano qualquer.
Tudo estava indo muito bem, quando recebi uma estranha visita. Era a síndica do prédio, acompanhada do porteiro. "Nós podemos dar uma olhada no seu ralo? É que está tendo um vazamento lá embaixo e suspeitamos que seja daqui." E sem a menor cerimônia foram entrando rumo ao meu banheiro. Evidentemente, não conseguiram tirar a tampa. PORQUE EU COLEI BEEEEEM COLADA! Após constatar o lacre, a síndica deu ordens para o porteiro arrombar o ralo. Fiquei pensando no Monstro e na satisfação que ele deveria estar sentindo. Comecei a desconfiar que isso fazia parte de um plano, afinal ele teve alguns meses, preso lá dentro, para planejar sua fuga. Eu nunca fui com a cara da síndica e, naquele momento, descobri que ela era cúmplice do Bafo do Ralo. Fiquei imaginando que ela devia morar no subsolo do prédio, num lugar sujo e feio onde criava baratas que entravam nos apartamentos para vigiar as pessoas e depois contar pra ela. (Esse é o mal do ator: necessidade incontrolável de criar). E enquanto a síndica estava lá, supervisionando o injusto arrombamento, eu ía imaginando a sua história. Muitas vezes ela me olhava e eu dava aquele sorriso amarelo, horrorizada com a criatura que estava diante de mim. Descobri a gang do esgoto. E, definitivamente, a Síndica Baratonga era a chefe.
            Dizem que a solidão pode enlouquecer uma pessoa. Sorte a minha ter tantos personagens a minha volta. É, tem coisas na vida que marcam para sempre. A primeira vilã a gente nunca esquece.

(escrito em 2002)

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